A homofobia que se descarta

A Tarde Ter , 16/04/2013 às 12:05    | Atualizado em: 16/04/2013    às 12:05   

A homofobia que se descarta   

      Wilson Gomes*   

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    Itamar Ferreira Souza, estudante de comunicação da Ufba, foi encontro morto no Campo Grande

Delegados de polícia, jornalistas e comentaristas dos fatos da vida nos jornais e em mídias sociais ficam especializados em estabelecer e descartar causas de crimes. "Foi latrocínio", declara a autoridade, esquecendo-se que latrocínio é apenas o nome de um crime e não a causa dele. "E se foi 'latrocínio' está descartada a homofobia", assevera o comentador de política online. Pois sim. Causas são coisas tão complicadas em Filosofia, que a Física de Aristóteles inventou uma teoria das quatro causas (material, eficiente, formal e final),  que nos quebra a cabeça até hoje. E se sairmos para o território da Física para as Ciências Sociais e a Psicologia, a vida não fica mais fácil.

Um sujeito, padecendo de amor não correspondido, lança-se, em desatino, do alto de uma ponte sobre o rio e morre. O que causou a sua morte? O afogamento e o impacto da queda, com certeza. Alguém dirá acertadamente que ele próprio matou-se - suicídio. Outros dirão que morreu de amor e estarão igualmente certos. Mas se não houvesse força de gravidade, o coitado do nosso amigo morreria?

Além do mais, ao fim e ao cabo, morreu porque estava vivo, já que os mortos não morrem, exceto em The Walking Dead.

Agora, pensem comigo. Imaginem que algum desses ícones da vida noturna e "marginal" das metrópoles - um morador de rua, uma prostituta de calçada, um travesti - seja assassinado brutalmente, como é tão comum, numa dessas madrugadas da invisibilidade.

Como eram pobres e não havia nada neles a ser levado, exceto a vida, o Dr. Delegado terá que descartar o reconfortante latrocínio. Ainda assim serão exploradas as hipóteses de rixa e acertos de contas, que são as perenes hipóteses número 2 para o submundo - coisa lá entre eles.

Haverá a possibilidade de que o Dr. Delegado possa inferir, dos dados disponíveis, da sua formação policial ou da sua enciclopédia pessoal sobre a vida que esses humanos aí foram mortos porque os seus assassinos compartilhavam o preconceito socialmente estabelecido de que certos tipos de vida são dispensáveis?

A repugnância pela "sujeira social", representada pelos tipos de vida que são identificados como margens (porque vistos do nosso centro), não é causa dos comportamentos de "higienização" homicida, tão típicos dos dias que correm?

Muitos compartilham esta repugnância, mas são certamente poucos os que resolvem "tomar providências" - aquelas providências que terminam em um índio incendiado porque dormia na rua aqui, crianças massacradas na Candelária ali, prostitutas, travestis, homossexuais assassinados em bases cotidianas no Brasil afora.

Claro, podemos brincar de achar e descartar causas ("causas" são de tantos tipos mesmo, não é Aristóteles?), principalmente as causas que não nos incomodem e impliquem, aquelas que afetem apenas vítima e assassino e os isolem de nós.

Assim, quem compartilha as premissas psíquicas e normativas da repugnância que move a mão que mata pode continuar mantendo os seus "valores" sossegadamente, já que as suas mãos estão limpas.

A vítima foi quem assumiu o comportamento de risco e o assassino é um louco que não tem nada a ver comigo. Imagino os pacíficos noruegueses do bem, mesmo que compartilhem as premissas de ódio contra imigrantes, traçando um círculo ao redor de Anders Behring Breivik, o sujeito que levou a premissa a um ponto tão radical que resolveu "tomar providências".

Não temos nada a ver com isso, dirão. Assim como traçaremos um círculo ao redor dos que matam homossexuais na noite, para isolá-los de nós,  e não assumirmos que compartilhamos com ele as premissas medonhas que são, sim, causa das mortes de que, em geral, nem ouvimos falar nos dias seguintes, confinadas à crônica policial.

De certas mortes, entretanto, é preciso impossíveis acrobacias intelectuais e morais para que se possa descartar o ódio como causa, mesmo que outras causas possam ser, plausivelmente, incluídas no pacote.

Mata-se para roubar o homossexual que buscava sexo na noite, sim; mas quem acredita que a questão sexual e o desprezo (mas também desejo, talvez) pela orientação homossexual não são uma causa do ódio que mata, só pode fazer isso por má-fé.

Mata-se por espancamento um menino que namorava na noite. Para roubar-lhe uns aparelhos eletrônicos (precisa-se matar para isso?) Porque era "marginal" e, portanto, descartável? Porque era homossexual e, portanto, podia ser descartado pela bestial faxina moral por meio do assassinato?

Se há alguma dúvida aqui é simplesmente esta: qual é a causa que o nosso conforto social vai descartar hoje? Ou vamos sair da nossa zona de conforto espiritual e assumir, sim, que a sociedade que compartilha o ódio ou o desprezo pela sexualidade homossexual tem as mãos sujas de sangue, mesmo que não tome providências para matá-los?

Afinal, o "não acho que foi por homofobia" é tão tranquilizante e simples, mas não nos torna pessoas melhores em certos casos.

Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor de comunicação e política, pesquisador na área de democracia digital

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